1.9.05

A Peça

“A vida é na verdade a verdadeira escola.
Há quem fale na escola da vida, como se só se aprendesse a viver!
Viver é aprender sempre, uns mais outros menos, uns isto outros aquilo!
Todos somos alunos e professores, é o que se chama coexistir.
Eu gosto desta escola, porque como sempre fui muito rebelde, aqui aprendo aquilo que gosto e não tenho “horários”…os compêndios encontro-os em qualquer sítio e gosto de pesquisar, às vezes no olhar das pessoas, nos gestos, nas palavras, embora essas por vezes tenham que ser traduzidas.
É também o laboratório onde fazemos as nossas experiências, e se alguma corre mal sempre temos um alguém para curar as feridas. De qualquer maneira teremos mais cuidado para a próxima vez e alguma coisa ficou desse aprendizado. O que aprendemos, pela sua natureza lúdica…, sempre nos traz alguma riqueza que, na maioria dos casos, queremos partilhar com quem está ao lado…
Blá blá blá, blá blá blá …blá blá blá!”
Atirou com caderno e lapiseira para longe, insatisfeita que estava com o artigo que queria mandar ainda essa tarde. Não estava a conseguir transmitir a ideia original que de tão rica, aqui mais parecia uma redacção de instrução primária.
Precisava de mandar o artigo para a revista, necessitava daquele dinheiro para fazer aquela compra que tinha prometido a si mesma, há um ano, o mais tardar no fim do Verão.
Olhou o relógio e decidiu que o melhor era fazer um intervalo. Colocou pelos ombros um casaquito de malha, pegou na bolsa, caderno e lapiseira, sempre gostara de escrever com lápis, conseguia dessa maneira um trabalho limpo, visto que podia apagar o que não interessasse, quem sabe se durante o passeio alguma ideia surgisse… e saiu para a rua onde o dia entardecia e sombras começavam a subir pelos prédios.
Virou esquinas, palmilhou empedrados de jardins, descansou pés no liso dos cimentos dos passeios.
Desceu à baixa e entrou em algumas lojas à procura daquilo que mais tarde iria comprar, mas não encontrou informação suficiente; não havia revistas ou catálogos onde pudesse fazer uma ideia do que estaria disponível, modelos ou preços. Não tinha pressa, mas desde que resolvera fazê-lo precisava daquela informação para poder decidir com sensatez.
Gostaria de uma peça de boa qualidade e boa aparência, sem ser ostensiva, a um preço razoável de modo a não ficar endividada.
Madeira escura, linhas direitas, sem grandes desenhos.
Se calhar ia ser difícil encontrar a peça que procurava, dado que ao mesmo tempo que não queria uma peça clássica, convinha algo que não ficasse démodé na altura em que fosse ser usada.
Tinha a certeza que assim que visse um esboço ou um desenho saberia o que realmente queria.
Chegada a casa, e depois de um frugal jantar, voltou a sentar-se à secretária e ficou a pensar o que mais poderia dizer sobre a escola e a vida...
Lembrou-se então de ter lido há muito tempo uma ideia expressa por uma velha camponesa, sedenta de informação, que disse que a escola deveria ser como as igrejas, sempre abertas para quando tivéssemos dúvidas ir simplesmente lá perguntar.
-Ideia peregrina, pensou, mas não de todo descabida.
A aquisição do saber deveria ser algo que fosse procurado, despertado pelo desejo de conhecer mundos e gentes, transmitido por quem gostasse de ensinar.
-Enfim, utopias!
Dali a pouco as considerações começaram a fluir e passada que foi uma hora já tinha o dito artigo pronto para entrega no dia seguinte, esperando que ainda fosse a tempo da edição dessa semana.
Positivamente tinha que comprar um computador, a escrita seria facilitada e o envio também, já que poderia enviar tudo por mail.
O telefone tocou, era Margarida que a desafiava a tomar um copo no Bar do costume, perto do Príncipe Real. A tarefa estava finalizada, por isso aceitou.
Vestiu uns Jeans e uma camisa indiana lilás com uma longa écharpe do mesmo tecido; foi bebericando um gin tónico e esperou.
O Bar estava agradavelmente frequentado, tanto em número como em gente bonita e simpática. Encontrou vários amigos, mas foi Luciano que fez com que aquela noite ficasse memorável, ao convida-la para irem a Braga no dia seguinte, convite esse que aceitou. Braga era por tradição terra de artífices de móveis e afins.
Munida de uma fita métrica foi até à arrecadação e começou a tirar apontamentos quanto ao espaço disponível. Havia espaço suficiente para a peça que queria comprar. A arrecadação era protegida de humidades e invasão de bicharada; a peça ficaria aqui bem até poder ser usada.

Luciano já a conhecia há um tempo e sempre a achara um pouco esquisita, mas muito simpática, pelo que não teve problemas em a convidar a ir com ele a Braga, embora o convite tivesse vindo um pouco em consequência duma conversa do grupo, mas só ela aceitou ir.
A viagem até correu bem, cada um tratou do que lá fora tratar e no regresso, encomendas feitas, a satisfação reluzia nos seus rostos.
Tinha tido um bom pressentimento, a peça foi bem mais barata do que podia imaginar, dado que não tinha havido intermediários. Tudo tinha ficado acordado, a entrega seria dali a 7 meses.
A mãe, há imensos anos a viver no estrangeiro, viria este ano passar duas semanas com ela. Decidiu que nada lhe diria para a não preocupar, que a peça iria por certo levantar controvérsias a quem a visse.
Continuou a escrever para a revista, mas a meio do Inverno uma grande prostração se abateu sobre a sua frágil pessoa, psicologicamente um pouco desequilibrada; felizmente já tinha a totalidade do dinheiro para a peça encomendada em Braga, que chegou em fins de Abril!
Tomou precauções para que a descarregassem na hora das telenovelas, de modo a não ser vista pela vizinhança, não queria de modo nenhum levantar coscuvilhices desnecessárias.
Durante mais de dois meses preparou tudo, e quando finalmente se propôs fazer aquilo que decidira há um ano, escreveu um bilhete para a mulher-a-dias e saiu para a escada, em pedra, demasiado longa, como a sua vida...
Quando a mãe chegou à pressa, para o funeral, não lhe souberam dizer exactamente o que tinha acontecido, a dúvida a perseguiu ainda durante um tempo e depois desistiu de compreender. O corpo foi cremado para o poder levar consigo, e só quando em Agosto voltou para liquidar a casa e os escassos bens, é que leu o bilhete em que ela pedia para ser enterrada no caixão que estava guardado na arrecadação...!

FIM



4 comentários:

Anónimo disse...

Mas que raio de peça é essa? Suspense? Quanto à escola sempre aberta... hum... nem as igrejas, Mi. Bjo

José Monteiro disse...

O teu post lembrou-me algo que li por aí: "aprende como se fosses viver para sempre... e vive como se fosses morrer amanhã."
Beijinho Théo.

Mocho Falante disse...

Uff tava a ver a minha vida mal parada pois não conseguia aceder à Sabenta, quase que tive que subornar a NETCABO (que é aquela com um profissionalismo de fugir)

Mais uma história fantástica... mas o que me fascinou hoje por aqui foram os belos barcos

Beijocas doces

Anónimo disse...

Mi... karaças!!!, mas que história mais deprimente. Fez-me lembrar um filme que vi, com a Spacek, em que, sereníssima, avisa a mãe que depois de ultimar algumas tarefas, se vai matar. Impressionada fiquei, como com esta história. Consegues mesmo surpreender-me, de cada vez que te leio. Ora que a miúda tem mesmo jeito prás coisas de ficção. Ora, que temos de falar a sério... bjo C