2.6.09

Conto de Junho


Memória de Elefante

Eram várias as recordações que tinha das colegas de escola, principalmente dos últimos anos.
Havia a Olívia, que morava na rua Fernão de Tomás, bem perto daquela loja que vendia os casacos de peles mais cobiçados dos seus quatorze anos.
A Odete que alimentava os gatos vádios do seu quarto andar com latas de comida e água, morava na Rua da Madeira, no Porto, claro.
A Natália e a Cândida, irmãs ricas, viviam numa vivenda na parte chique da cidade, e os lanches eram qualquer coisa que ela não podia ter na sua humilde casa de um só piso, nas traseiras da loja onde a mãe tentava equilibrar as finanças de divorciada.
Mas aquela que ela nunca esquecera fora a Leonor, que morava lá no alto da Rua Stº Ildefonso, num quarto andar de escadas a ranger a cada passada, onde ia fazer os deveres de casa quando a matéria era de difícil explicação.
Ao descer, sempre mas sempre, Leonor a empurrava cada degrau de escada, com risco de a fazer cair perigosamente. Conseguia ser rápida de modo que nunca houvera perigo de maior, mas a sensação permanecera e nunca esquecera aquela iminência de perigo, ao ponto de ainda hoje, passados cinquenta anos, de vez em quando, sonhar com qualquer coisa de semelhante como a vertigem de uma escada a ser galgada de quatro em quatro.
Estivera internada com uma depressão ou esgotamento, não sabia ao certo, resolvera voltar ao Porto para encontrar um motivo para continuar, para se encontrar entre o presente e o passado.
Aproveitou as festas de S. João, em visita a familiares e amigos, apreciando cada cheiro, cada esquina, recordando os velhos cantos, admirando cada melhoramento, lamentando as degradações de uma face da cidade que já fora bela, onde brincara “à macaca” na sua meninice, a escola primária, o jardim onde ia nas tardes de verão…
Certa tarde a caminho do jardim de 24 de Agosto, ao passar pela Rua Stº Ildefonso, quem vê com espanto a sair de uma casa que lhe parecia familiar? A Leonor!
Ficam indecisas, olhando-se mutuamente, hesitando em acreditar…e acabam por, olhando melhor, se cumprimentar, reconhecidas pela juventude já perdida nas rugas de cada uma.
O barulho da rua apagou as palavras e o grito de Leonor, no preciso momento em que passava um autocarro e um braço imitou um gesto de infância, tornado trauma, e a empurrou com um mudo brado libertador.