10.2.05

O perfume de 70...

Roubado ao xis-tema


Maria da Graça tem a graça
De deixar atrás de si, quando passa,
O perfume de setenta e picos primaveras.
E o ar, esse, fica mais cheio
Daquele sorriso de raça
Que nem o tempo quis apagar
Do rosto que o sol moldou
No sal da vida que passa.

Às vezes, senta-se na praça
Descansa olhares vagos, distantes,
Nos risos contagiantes
Dos petizes que por lá brincam.
E Maria da Graça, perdendo a graça,
Ainda se sonha, assim criança,
Na adulta que sempre foi.
Que até mesmo as risadas
Soltas em infantis gargalhadas
Eram sempre para conter
O choro faminto e triste
Dos que depois dela, lá em casa,
A vida pariu, para sofrer.

De letras nada sabe
Porque sempre lhe disseram
Que as mãos serviam para fazer
E a cabeça só para ver.
E Maria da Graça sonhava,
Como qualquer outro ser,
Em ser quem por a vida passa,
Em vez de a ver correr.
Mas nem o sonho duma casa,
Que tanto a fez querer,
Mudou, do destino, a traça
Com que a vida a viu nascer.
E, por maldição ou quebranto,
Viveu Maria da Graça em pranto
A ver a vida madrasta
Desfazer-lhe o pouco encanto
Do nada que conseguia ter.

Olha para trás e, por desgraça,
Vê que em nada deixa a marca
Que outros lhe possam ler.
Infeliz de quem a vida destinou
A não poder provar o gosto
De ver, no papel transposto,
A graça que Deus lhe deu.

Mas um dia Maria da Graça,
Ao ouvir os risos na praça,
Dos petizes que por lá brincam,
Levanta a cabeça do breu
E abre as mãos de só fazer
Para agarrar, da vida baça,
O pouco, que quer só seu.
E, na força com que se faz raça,
Num gesto que a ultrapassa,
Apaga do destino a desgraça
De tanto viver sem deixar traça.

Mestre-escola... por favor?
Chamo-me Maria da Graça
Tenho, do que a vida me ensinou,
Cicatrizes de amargo sabor,
De tanto olhar pela vidraça.


E agora, Maria da Graça,
Com letras de avidez
É tempo de quebrares a vidraça
E recontares, com a tua graça,
O sonho de menina-garça,
Mas começando por...
"Era uma vez..."

*****
Esta é a singela homenagem a todas as Marias da Graça que, com garra, nos dão grandes lições de querer e de viver.
É, também, dirigida aos formadores e organizadores locais do ensino e educação de adultos deste país, pela entrega e carinho com que desenvolvem o seu trabalho.
O meu bem-haja a todos.

António San

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