15.7.05

O Toque ll

Adozinda era tão magra como só o azedume pode transformar um corpo de criança normal naquela fineza de carnes.
Já em pequena gostava de meter as colegas, que amigas não tinha, em apuros e complicações, intrigava junto da professora com um ar tão cândido que não era difícil de acreditar. Poucas vezes era convidada para casa de alguma colega em dia de festa, mas quando isso acontecia por uma ou duas vezes, era vê-la insinuar-se junto dos adultos com tão bom comportamento que a apontavam como exemplo a seguir.
Tinha sempre os cadernos e livros impecavelmente tratados, os trabalhos de casa feitos a horas e nunca copiava...mas também nunca ajudava um colega que fosse e desdenhava quando via um trabalho de uma colega ser elogiado.
Assim cresceu Adozinda, boa aluna, sem ser brilhante, bem comportada, querida do pai e conformada com a mãe que tinha, pessoa metida entre panelas, roupa para lavar e passar, folhetins românticos e pouco mais, descuidada do corpo e da alma e quase analfabeta.
Conheci-a já no 3º ano; qualquer assunto desenvolvido ao pé dela era logo desviado para a religião e seus dogmas, a confissão, o pecado, a punição, quando os adolescentes nessa idade querem é falar de namoros e amores, roupas e festas. Nunca ninguém lhe conheceu namorado ou pretendente sequer.
Foi crescendo, envelhecendo, emagrecendo de tanta bílis destilar em assuntos polémicos, dizendo mais mal do que bem do que a rodeava, sempre pronta a maldizer de vizinhos, conhecidos e desconhecidos.
Mas um dia algo aconteceu que fez com que aquele rosto se suavizasse, num trejeito, que não era bem um sorriso, mas era o que de mais parecido podia levantar os cantos daqueles olhos frios até então e que agora pareciam quase ternos.
Alguém, bem intencionado ou não, para o caso não importa, veio colocar-lhe à porta um cesto com um gatito, pequeno de mês, pêlo amarelo e grandes olhos azulados. A partir daquele dia a vida de Adozinda modificou-se como por encanto de uma qualquer divindade.
Aquela mulher, cujos cabelos encaneceram quase sem ela se dar conta, começou a distender as rugas do rosto e sua boca deixou de ser aquele traço caído numa constante censura para, aos poucos, começar numa curva ascendente a construir uma alegria, um desajeitado sorriso.
E começou a falar…com o gato!
Ao princípio fez-lhe muitas perguntas:
De onde vens? Quem te trouxe? E o que vieste cá fazer?
Olha eu vivo aqui sozinha, meus pais já morreram há muito tempo, o meu pai, coitadito, foi de repente, já a minha mãe esteve muito tempo acamada e por fim estava mais morta que viva, foi melhor assim, já não andava cá a fazer nada, coitada, que Deus me perdoe.
Aos poucos, Adozinda, ao falar com o gato, ia descobrindo sobre si mesma, coisas sobre as quais nunca se questionara e ia pensando ou repensando a sua vida…
De repente deu por si a rir-se e, vaidade das vaidades, a olhar-se ao espelho longamente e auto-criticar-se por aquela saia comprida, a gola subida, o cabelo mal tratado. Já demorava o olhar nas montras onde o vestir tinha graça e quase se assustou ao achar bonitos aqueles sapatos de salto alto e um dia lá se aventurou a entrar num cabeleireiro da baixa.
Quando voltou a casa o gato aprovou, miando mais do que era costume e em roçanços em oito mostrar contentamento.
Ela foi contando a tarde que tivera e timidamente foi tirando dos sacos a roupa que comprara no centro comercial, em saldo é certo, mas peças que jamais ousara vestir, mas que ficavam bem com o novo penteado, dissera a vendedora.
Foi nessa tarde que Adozinda finalmente encontrou nome para o gato…
Mudou de pastelaria, sentiu que toda uma vida nova se estendia à sua frente, e foi com trémulos receios que se sentou à mesa mais ao fundo do Café da Praça, recentemente inaugurado.
Pouco a pouco foi crescendo, se libertando, se soltando, e não sendo bonita tornou-se uma mulher quase interessante e embora ainda se notassem resquícios de beata contestação, conseguia já tomar parte duma conversa da tertúlia do café sem fazer grandes reparos de conotações religiosas.
Ora um dia o gato desapareceu e foi em vão que todos os recantos foram vasculhados, todas as portas de armários abertas, até gavetas que não eram usadas há muito tempo…e nada.
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(Vou deixar-vos com Adozinda, na procura do bichano e eu do fim desta estória)

2 comentários:

José Monteiro disse...

Hum, ainda não é desta que fico a gostar de gatos. Mas a estória é deliciosa Théo.
Beijinho.
José Carlos.

Anónimo disse...

Como sempre encantada com as tuas histórias, Th. Ansiosa pela sua conclusão pois fizeste com que esteja a dar tratos à imaginação para vislumbrar um final. Bjo