Desde que comprei uma passagem de comboio para o Porto através da net, passei a receber de vez enquando notícias da CP.
Eis o que recebi hoje, que por achar muito interessante, partilho convosco:
Comboios e cinema
Amor centenário
Comboios e cinema não são contemporâneos mas quase.
Se é verdade que a exploração comercial dos caminhos-de-ferro remonta a 1826, o cinema nasce numa altura em que a via-férrea vive a sua época de ouro (1895). De então para cá tornaram-se companheiros inseparáveis e alguns dos grandes filmes de todos os tempos têm como referência central o comboio.
Nem de propósito: um dos primeiros filmes realizados pelos irmãos Lumiére, em Dezembro de 1895, mostra a chegada de um comboio a vapor à estação parisiense de Montparnasse. Escusado será dizer que os espectadores que se amontoavam no Grand Café, em pleno Boulevard des Capucines, para a primeira sessão paga de cinema de que há memória, saltaram das cadeiras quando viram uma locomotiva fumegante avançar na sua direcção.
Era o começo de uma relação de amor entre cinema e caminho-de-ferro que dura até aos nossos dias e, tanto quanto nos é dado antever o futuro, sem fim à vista. Passar dos documentários para a ficção foi um instante. E um dos primeiros “westerns” - mudo, naturalmente, que a invenção do sonoro ainda ia demorar umas duas décadas – inspira-se nos assaltos aos comboios no oeste norte-americano. “The Great Train Robbery” até inclui a defenestração em andamento de uma pobre vítima…
Cow-boys e ComboiosA presença do comboio no “western” é recorrente e todos os grandes realizadores por aqui passaram. Ainda sem banda sonora, John Ford assina em 1924 uma das suas primeiras obras, “O Cavalo de Ferro” (The Iron Horse), dedicado à epopeia da construção do caminho-de-ferro transcontinental. À mistura com a história de um jovem que quer vingar o assassinato do pai, cruzam-se ataques de índios e a presença de figuras míticas como Buffalo Bill ou o presidente Lincoln.
Em 1939, já com o sonoro bem consolidado, volta-se exactamente ao mesmo tema, desta vez com o argumento centrado na luta, nem sempre limpa, entre as duas companhias que constroem, cada uma a partir de seu oceano, o transcontinental. “Union Pacific” é assinada por um surpreendente Cecil B. de Mille, aqui bem melhor que nos épicos bíblicos posteriores e filmando uma das grandes cenas de “suspense” de sempre, com o comboio ameaçando descarrilar durante a travessia de um viaduto sobre águas revoltas.
Memórias lusas
Não há filme de “cow-boys” digno desse nome que não tenha uma cena com um comboio. Mas interrompa-se esta reflexão para saudar a entrada em cena do sonoro no cinema português. Em 1933 Cottinelli Telmo realiza “A Canção de Lisboa” e, uma das cenas mais conhecidas é o Vasquinho da Anatomia a ir buscar as tias à estação do Rossio, acompanhado pelos companheiros de folia. Nesse tempo, as ligações ferroviárias de longa distância acabavam em pleno centro de Lisboa, depois de uma tenebrosa travessia do túnel do Rossio, cheio de faúlhas e cinzas de carvão. Até havia nas Escadinhas do Duque barbeiros, lavandarias e restaurantes especializados em ajudar os infelizes passageiros a retomar uma aparência mais normal. Nove anos depois, estreia outro filme marcante português com cenas-chave ligadas ao comboio: Manoel de Oliveira roda “Aniki-Bobó” entre a ribeira portuense, o (agora desafectado) ramal da Alfândega e a estação de Campanhã.
De regresso ao “western” é inevitável uma referência a “High Noon” de Fred Zimmermann, estreado em 1952 e conhecido entre nós por “O Comboio Apitou Três Vezes”. O comboio – que pouco se vê – é central na trama: é a bordo dele que virão os quatro bandidos desafiar um xerife, protagonizado pelo grande Gary Cooper, abandonado por todos na hora da verdade, mas que não vacila no cumprimento do que a sua consciência lhe dita. O triplo apito do comboio remete para a tripla traição de São Pedro, ao renegar Jesus pelo cantar do galo. E a metáfora da firmeza das convicções versus traição é tanto mais curiosa quanto se sabe que o argumentista do filme, Carl Foreman, foi um dos cineastas denunciados e perseguidos como reais ou supostos simpatizantes comunistas durante a Caça às Bruxas promovida pelo senador McCarthy no auge da Guerra Fria.
Crepúsculo de um géneroComboio e “western” continuarão a caminhar juntos, ilustrando, quer os devaneios tecnológicos, quer a crise atravessada pelo género a partir dos anos 60. Curiosamente John Ford regressa ao tema, associando-se a George Marshall e Henry Hathaway para levar a cabo uma super-produção em episódios, especificamente pensada para o formato Cinerama e de alguma forma falhada mas nem por isso menos interessante: “A Conquista do Oeste”. Rodado em 1962 fecha, como não podia deixar de ser, com um movimentado assalto ao comboio. Já Sam Peckinpah, ao filmar em 1969 “A Quadrilha Selvagem”, inclui outra cena de assalto a um comboio, desta vez transportando equipamento militar cobiçado pelos rebeldes mexicanos. Bem no tom geral do filme, ironiza com o envelhecimento das personagens (e do próprio género) mas as imagens, algumas ao ralenti e de uma tremenda violência, são um extraordinário espectáculo visual.
No meio de tudo isto, “Chaimite” de Jorge Brum do Canto, estreado em 1953, não destoa, nomeadamente ao nível técnico. Pense-se o que se quiser sobre se o filme é (ou alguma vez poderia ser) politicamente correcto, na medida em que se inspira na luta entre o corpo expedicionário luso e os rebeldes vátuas na Moçambique de 1895. Mas as cenas iniciais, com a família de colonos a ser engolida pelo mar de guerreiros negros, enquanto estendem impotentes as mãos para o comboio que retrocede para Lourenço Marques são cinema e do bom, que John Ford não desdenharia assinar.
A guerra sobre carrisOutro género onde o comboio marca forte presença é o filme de guerra, nalguns casos com o caminho-de-ferro no centro do enredo. A acção dos resistentes franceses durante a ocupação alemã inspirou duas obras totalmente diferentes, mas ambas merecedoras de destaque. Ainda a quente, em 1945, René Clément roda “La Bataille du Rail”, com a participação militante dos ferroviários, alguns revivendo episódios pelos quais tinham acabado de passar. Mistura de documentário e acção, ao mesmo tempo exaltante e primariamente anti-alemã é uma obra incontornável sobre a Resistência. Em 1964, John Frankenheimer inspira-se nos mesmos episódios para realizar “O Comboio”. Retenham-se um grande papel de Burt Lancaster e a cena do fuzilamento do maquinista que retardara decisivamente a marcha do comboio, despejando as moedas que trazia no bolso nos batentes das bielas da locomotiva.
Sem ser uma obra-prima mas como razoável filme de acção evoque-se “O Expresso de Von Ryan” (Mark Robson, 1965), fuga aventurosa de um grupo de prisioneiros de guerra norte-americanos que se assenhoreiam do comboio que os transporta. E que tem a curiosidade de nos mostrar um Frank Sinatra que não era tão mau actor como isso, retomando um desempenho prefigurado pela sua fugaz aparição, muito anos antes, em “Até à Eternidade” (Fred Zinnemann, 1953).
E é um comboio, novamente tão metafórico como o de “High Noon” que ressurge num dos melhores filmes de guerra de todos os tempos: “A Ponte do Rio Kwai”, obra-prima de David Lean (1957) e que valeu a Alec Guiness o Óscar para o melhor actor. A construção da ponte para a ferrovia japonesa da Birmânia é o pretexto para questionar noções como a lealdade ou o patriotismo e pôr em causa a lógica perversa que tantas vezes se assenhoreia da instituição militar. Já agora, é interessante referir que a verdadeira ponte foi destruída, não pelo “beau geste” de um pequeno comando mas pelos raids da aviação norte-americana. E que, nos guias de viagem e livros de história que os turistas japoneses trazem no bolso, a construção do caminho-de-ferro da Birmânia é referida como uma grande obra de engenharia, sem uma palavra sequer sobre o martírio dos prisioneiros de guerra britânicos, australianos, neo-zelandeses, norte-americanos e outros, escravizados e forçados a trabalhar até à morte…
Apesar de tudo, seria injusto e redutor ficarmo-nos pela guerra e pelos “westerns”. Alguns dos mais belos filmes de amor passam-se em comboios. Que dizer do par Robert de Niro-Merryl Streep em “Encontro com o Amor” (Ulu Grosbard, 1984)? E, sobretudo, dessa preciosidade que é o esquecido “Breve Encontro” de David Lean. Um filme notável, feito em 1945 e um dos grandes desempenhos de Trevor Howard, no papel de um médico que, um dia, se apaixona por uma das suas habituais companheiras de viagem no comboio suburbano. Retrato de um quotidiano monótono e sem perspectivas e do drama dos apaixonados perante um amor que pressentem como impossível, merece fechar com dignidade esta outra história de amor vivida há mais de cem anos entre o cinema e o caminho-de-ferro.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Beijo enorme para ti, Bisa!!, IO.
Minha querida...vim aqui depositar os meus votos de um Excelente Natal, cheio de Paz e muitas coisas boas
Beijocas muito doces e saudosas
Enviar um comentário