15.12.05

Gostaria de Ler


Gostaria de ler no Jornal da Região que não há pobres no concelho de Cascais em vez da notícia que “somente” na zona nobre de Cascais, para onde foram canalizados 260.000 euros (260 mil euros), as iluminações de Natal estão a funcionar. Cada Junta de Freguesia ainda não recebeu os 19 mil euros que lhes foram atribuídos já em Janeiro de 2005 para este efeito…
Gostaria de ler que a solidariedade se tem manifestado, particularmente nesta época, de modo a que todas as famílias tenham qualidade de vida, os que estão sós sejam acolhidos em colectividades, onde aliás todo o ano ali encontram apoio e ajuda, usufruindo dum bem caro a todo o ser humano, o sentir-se gente que tem carinho e amor.
Gostaria de ler que as crianças, as crianças Senhor!
Gostaria de ler que não há mais crianças maltratadas pelos pais e familiares, têm famílias harmoniosas, onde os laços são fortes, onde há uma inter ajuda, alicerces resistentes que augurem futuros equilibrados.
Gostaria de ler histórias sobre o respeito devido a cada individuo, seja ele de que credo, cor ou raça.
Gostaria de ler que a Paz veio até nós, e finalmente os direitos de cada povo foram devidamente salvaguardados.
Se foi para “ler” este mundo de abrolhos… com esses teus lindos olhos!
Antes fosse ceguinha…

E foi assim que me lembrei de António Nobre:

A Vida

Ó grandes olhos outonais! místicas luzes!Mais tristes do que o amor, solenes como as cruzes!Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos corDa capa de Hamlet, das gangrenas do Senhor!Ó olhos negros como noites, como poços!Ó fontes de luar, num corpo todo ossos!Ó puros como o Céu! ó tristes como levasDe degredados! Ó Quarta-Feira de Trevas!Vossa luz é maior que a de três luas cheias,Sois vós que alumiais os presos, nas cadeias.Ó velas do perdão! candeias da desgraça!Ó grandes olhos outonais, cheios de graça!Olhos acesos como altares de novena!Olhos de génio, aonde o bardo molha a pena!Ó carvões de acendeis o lume das velhinhas,Lume dos que no mar andam botando as linhas...Ó farolim da barra a guiar os navegantes!Ó pirilampos a alumiar os caminhantes,Mais os que vão na diligência pela serra!Ó extrema-unção final dos que se vão da Terra!Ó janelas de treva, abertas no teu rosto!Turíbulos de Luar! Luas cheias de Agosto!Luas de Estio! Luas negras de veludo!Ó luas negras, cujo luar é tudo, tudoQuanto há de branco: véus de noiva, calDa ermida, velas de iate, sol de Portugal,Linho de fiar, leite de nossas mães, mão juntasQue têm erguidas entre círios, as defuntas!Consoladores dos Aflitos! Ó olhos, as portasDo Céu! Ó olhos sem bulir como águas mortasOlhos ofélicos! Dois sóis, que dão sombrinha...Que são em preto os olhos verdes de Joaninha...Olhos tranquilos e serenos como pias!Olhos cristãos a orar, a orar ave-mariasCheias de Luz! Olhos sem par e sem irmãos,Aos quais estendo, a toda a hora, as frias mãos!Estrelas do pastor! Olhos silenciosos,E milagrosos, e misericordiosos,Com os teus olhos nunca há noites sem luar,Mesmo no Inverno, com chuva e a relampejar!Olhos negros! vós sois duas noites fechadas,Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...Mas dize, meu amor! ó dona de olhos tais!De que te serve ter uns astros sem iguais?Olha em teu redor, poisa os teus olhos! O que vês?O tédio, o tédio, oh, sobretudo o tédio! O mêsEm que estamos, igual ao mês passado e ao que há-deVir. Ódios, ambições, faltas de honra, vaidade(Quase todos a têm, isso é o menos), o orgulhoInsuportável tal o meu, e o sol de Julho!Jesus! Jesus! quantos doentinhos sem botica!Quantos lares sem lume e quanta gente rica!Quantos reis em palácio e quanta alma sem férias!Quantas torturas! quantas Londres de misérias!Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!Quantos suores sem proveito! quantas taçasA transbordar veneno em espumantes bocas!Quantos martírios, ai! quantas cabeças loucas,No manicómio do planeta! E as orfandades!E os vapores do mar, doidos, às tempestades!E os defuntos, meu Deus! que o vento trás à praia!E aquela que não sai por ter usada a saia!E os que soçobram entre a vaidade e o dever!E os que têm, amanhã, uma letra a vencer!Olha essa procissão que passa: um torturadoDe infinito! Um rapaz que ama sem ser amado,E para ser feliz fez todos os esforços...Olha as insónias duma noite de remorsos,Como dez anos de prisão maior celular!Olha esse tísico a tossir, à beira-mar...Olha o bebé que teve torre de coralDe imensas ilusões, mas que uma águia, afinal,Devorou, pois, ao vê-la ao longe, avermelhada,Cuidou, ingénua! que era carne ensanguentada!Quantos são, hoje! Horror! A lembrança das datas...Olha essas rugas que têm certos diplomatas!Olha esse olhar que têm os homens da política!Olha um artista a ler, soluçando, uma crítica...Olha esse que não tem talento e o julga terE aquele outro que o tem... mas não sabe escrever!Olha, acolá, tantos estúpidos, meu Deus!(Morrendo, diz-se, vão para o reino dos Céus...)Olha um filho a espancar o pai que tem cem anos!Olha um moço a chorar seus cruéis desenganos!Olha o nome de Deus, cuspido num jornal!Olha aquele que habita uma torre de sal,Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,Mas de outras que chorou, de lágrimas salgadas!Olha um velhinho a carregar com a farinhaE o filho no arraial, jogando a vermelhinha!Olha, lá vai saindo o paquete Dom GilCom os nossos irmãos que vão para o Brasil...Olha, acolá no cais uma mulher como choraÉ o marido, um ladrão, que vai «pla barra fora»!Olha esta noiva amortalhada, num caixão...Jesus! Jesus! Jesus! o que i vai de aflição!Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos,Ó flor sem eles! que tu tens tão lindos olhos!Ah! foi para isso que te deu leite a tua ama,Foi para ver, coitada! essa bola de lamaQue pelo espaço vai, leva como a andorinha,A Terra! Ó meu amor! antes fosses ceguinha...António NobreParis, 1891

Adenda: desculpem a maneira como este post está formatado, mas não consigo de outra maneira...azelhice minha.)

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